Precisamos falar sobre FeLV...
O vírus da leucemia felina (FeLV) é um retrovírus exclusivo da espécie
felina que infecta gatos de todas as idades (pacientes pediátricos,
jovens adultos, pacientes maduros ou idosos) através da saliva. Quando
um gato realiza o toalete do seu companheiro de colônia, caso tenha
partículas virais na sua saliva, deixa o vírus no pelame do outro gato,
que ao se limpar, se infecta por via oral. É uma doença extremamente
presente no Brasil, e muito preocupante, que pode ter uma série de
manifestações clínicas inespecificas.
É importante ressaltar que embora possa acontecer em todas as idades, os filhotes são mais susceptíveis que os adultos. Conforme os gatos vão amadurecendo, vão se tornando mais resistentes. No entanto, diversos trabalhos relatam infecção pelo FeLV em gatos adultos, assim como eu também já pude observar em minha rotina. É um vírus que infecta exclusivamente gatos, não sendo uma zoonose, ou seja, não é transmitido para outras espécies, como cães e humanos, por exemplo. Embora não tenha tanta importância, a transmissão pelo leite materno pode ocorrer, mas nota-se que a transmissão durante o toalete realizado pela mãe na ninhada é a forma mais importante de infecção.
A parte que considero a mais difícil,
tanto de explicar quanto de entender, é sobre a classificação dos pacientes quanto ao FeLV. O último consenso sobre
Retroviroses (FIV e FeLV), de 2020, da AAFP e da ISFM (as duas maiores
entidades em Medicina Felina do mundo), classificam os pacientes em quatro
grupos:
- Os que podem ter se infectado em algum momento com o FeLV
mas conseguiram eliminar o vírus de seus organismos - Infecção Abortiva
-
Os que se infectam, sofrem a replicação viral e após algum tempo
eliminam, mas já tiveram a introdução do material genético no seu DNA -
Infecção Regressiva
- Os que podem apresentar FeLV em sua medula óssea, ou seja, Infecção Focal
- Os que se infectam e ficam positivos nos
testes, e, portanto, são capazes de transmitir o vírus para outros gatos
- Infecção Progressiva
O teste rápido é capaz de detectar somente a
infecção progressiva, eventualmente a abortiva, embora um teste positivo
na técnica ELISA e negativo no PCR seja discordante, sugere-se então,
nesse caso, repetir o PCR após 30 dias, pois ele pode ter feito
replicação seguida de abortamento viral. Então, um teste rápido negativo
não significa que o paciente nunca teve FeLV, e assim é importante
fazer um PCR como contraprova. Consulte sempre um Médico Veterinário
para solicitar e interpretar os testes do seu gato e saber quando um
gato recém-introduzido numa casa pode ter contato com seus novos
companheiros felinos que já moram lá! Ah, e é importante lembrar que
TODOS OS GATOS DA CASA DEVEM SER SEUS STATUS DE FIV/FeLV DETERMINADOS!
NÃO É POSSÍVEL DETERMINAR QUE UM GATO É NEGATIVO SEM TER SIDO TESTADO.
Aliás, acho que como vocês repararam, às vezes é difícil de saber que o
paciente teve FeLV em algum momento, visto que já vi, na minha rotina,
gatos serem negativos no teste rápido, negativos no PCR, mas perante um
quadro de trombocitopenia (diminuição das plaquetas no hemograma) e
anemia crônica com necessidade de transfusão, pode ser necessário
realizar pesquisa de antígeno de aspirado de medula! Não é uma doença
fácil de diagnosticar!
O mais triste do FeLV são as suas consequências. Já perdi a conta de
quantas consequências presenciei. A mais comum de todas, com toda
certeza, são os linfomas, especialmente os torácicos, que culminam
geralmente com acúmulo de líquido (efusões pleurais) entre o pulmão e a
parede do tórax, o que leva o gatinho a ter muita dificuldade
respiratória. Não tão frequente como os linfomas, mas muito grave, é a
leucemia, que leva os pacientes quase que em sua totalidade a óbito
apesar das tentativas de tratamento. Anemias importantes, que não
respondem à medicação e necessitam de transfusões em sequência e
distúrbios de coagulação devido à deficiência de plaquetas são as
alterações sanguíneas mais comuns. Também é muito frequente observar
alterações neurológicas (como paralisias totais ou parciais, alterações
da caminhada e convulsões), circulatórias (como as vasculites),
oftálmicas (caracterizadas pelas uveítes, que também podem estar
relacionadas aos linfomas) e até mesmo cutâneas (como quadros de
distúrbios de queratinização e cornos cutâneos). A infecção pelo FeLV
pode inclusive reduzir a imunidade dos pacientes, e acelerar o processo
de envelhecimento, devido à deposição de complexos antígeno-anticorpo em
rins, resultando em doença renal precoce, e à produção de radicais
livres.
O FeLV não tem tratamento eficaz conhecido, ou seja, não há um
medicamento que elimine ou controle a infecção pelo FeLV com eficácia. O
tratamento consiste, portanto, em cuidar das doenças secundárias, como
por exemplo, quimioterapias no caso de linfomas e leucemia, transfusão
sanguínea, tratamento da uveíte, da encefalite, controle de convulsões,
drenagem da efusão pleural (toracocentese) para melhorar o quadro de
dificuldade respiratória (dispneia), controle da dor e da febre quando
houver, etc. Portanto, A PREVENÇÃO SE TORNA IMPORTANTÍSSIMA, visto que o
tratamento das doenças secundárias à FeLV é complicado, custoso e o
prognóstico é de reservado a ruim. E há basicamente três pilares na
prevenção: evitar, testar e vacinar.
- Evitar: não deixe seu gato
perambular por aí! Tele sua casa, seu quintal, para que ele não dê as
voltinhas dele! Ele pode fazer amigos na rua, ou algum outro resolver
vir para sua casa. Lugar de gato é dentro de casa, com carinho, cuidado,
amor, proteção e enriquecimento ambiental. Os gatos positivos para
retroviroses devem sim ser separados dos demais, eu inclusive sugiro que
gatos FeLV positivos sejam filhos únicos.
- Testar: conhecer o seu
gato pode evitar que ele coloque outros gatos em risco. Conhecer o gato
que se está adotando ou comprando, saber seu status de FIV/FeLV e seguir
os protocolos de testagem e quarentena é fundamental para não colocar
os gatos habitantes da casa em risco! Então o teste é fundamental para
TODOS OS GATOS! Miou, testou!
- Vacinar: uma vez testados, os gatos
devem ser vacinados contra FeLV, de maneira ética, no consultório, e sob
orientação de um médico veterinário. Reforço aqui que há sim a
importância de testar e também reitero que, mesmo que um gato seja
vacinado contra FeLV, deve-se segregar os positivos, visto que NENHUM
TRATAMENTO OU PREVENÇÃO VACINAL É CEM PORCENTO! Medicina não é
matemática e falhas da resposta vacinal podem ocorrer, sendo que a
eficácia das vacinas contra FeLV variam entre 68 a 79%, dependendo da
tecnologia empregada. Então a segregação continua sendo a forma mais
adequada de se evitar a doença. Então... por que vacinar? Porque países
que vacinaram os gatos de forma mais frequente obtiveram a redução dos
números de casos! #mioutestouvacinou
Fontes de Pesquisa:
- LITTLE, S. et al. 2020 AAFP Feline Retrovirus Testing and Management Guidelines. In: Journal of Feline Medicine and Surgery n.22, 5–30, 2020. Disponível em https://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1177/1098612X19895940
-DE SOUZA, H.J.M et al., Múltiplos cornos cutâneos em coxins palmares e plantares de um gato persa 678Souza et al.Ciência Rural, v.40, n.3, mar, 2010. Ciência Rural, Santa Maria, v.40, n.3, p.678-681, mar, 2010.
-SPARKES, A. H.; TASKER, S.; THIBAULT, J. C.; POULET, H. A Comparative
Study of the Efficacy of a Canarypox Based Recombinant Leukemia
Vaccine against a Natural Contact Felv Challenge in Cats. Journal of
Vaccines and Vaccination, v.6, p. 300-306, 2015.
- LEVY et al.2008 American Association of Feline Practitioners' feline retrovirus management guidelines. In: Journal of Feline Medicine and Surgery, p 300-316, 2008. Disponível em https://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1016/j.jfms.2008.03.002